A Rosa do Povo By Carlos Drummond de Andrade
Mudou minha vida 8501061360 Minha experiência passada com Carlos Drummond não tinha sido muito positiva. Li “Alguma Poesia” e “Sentimento do Mundo” ano passado, e foram duas coleções que me decepcionaram bastante.
Lembro de não ter me conectado com nenhuma poesia, de ter achado o cunho político-social, principalmente da segunda obra, cansativo e tedioso. Gosto, no geral, de poesias subjetivas. Gosto de ler sobre sentimentos, amores e sofrimentos, e não tinha encontrado nada disso em Carlos Drummond.
Bom, minha experiência com “A Rosa do Povo” foi completamente diferente. A discrepância foi tão grande que quero reler as duas primeiras obras para rever minhas opiniões e tentar encontrar o poeta que conheci agora em seus outros trabalhos.
“A Rosa do Povo”, até comparado com “Sentimento do Mundo”, é uma coleção ainda mais voltada para o cunho social, o que me deixa surpresa, considerando o tanto que consegui me entreter com ela e o tanto que isso foge da minha zona de conforto quando se trata de poesia.
O poeta trata de diversos temas relacionados ao momento em que vive, retratando a Segunda Guerra Mundial, Ditadura de Vargas e outros acontecimentos históricos da época, e deixa transparecer seus ideais políticos, voltados a movimentos de esquerda.
Porém, em meio a suas poesias, é possível sentir uma subjetividade que não lembro de ter experienciado em “Sentimento do Mundo”. O apelo do poeta, o sentimento de impotência em relação ao que o mundo vivencia, as repercussões emocionais de acontecimentos na sua vida pessoal, são fatores que tornaram essa coletânea tão diferenciada para mim.
São poemas, em sua maioria, extensos e uns chegam a ser cansativos. Me perdi várias vezes nas diversas ideias que só um poema conteve, mas isso não tornou a experiência de leitura cansativa, pois logo após encontrava um texto que me dava vontade de ler e reler incansavelmente, por conta de sua genialidade.
Meus destaques
- A procura da poesia
- A flor e a náusea
- Carrego comigo
- Anoitecer
- Rola mundo
- O mito
- Resíduo
- Noite na repartição
- Consolo na praia
- Como um presente
- Os últimos dias
8501061360 Um dos melhores e mais fortes livros do autor. Quanto ao prefácio de Affonso Romano de Sant'Anna, poderíamos - os leitores, o autor e a editora - ter passado sem. Abusa de trocadilhos com os títulos de outros livros de Drummond e o ranço anticomunista é forte demais, o que destoa muito da proposta e da feitura do livro.
E a capa. Capa com foto, por quê. 8501061360 ele viaja sempre, esse navio,
essa rosa, esse canto,
essas palavras, só pensamentos
ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal 8501061360 Nesse livro dá pra ver o autor misturando mais temas e estilos. Todo turbilh��o da época pode ser sentido nessas páginas.
Entretando, ainda gostei mais de Sentimento do Mundo. 8501061360
characters A Rosa do Povo
'Rosa do povo' reúne 55 poemas escritos em dois anos (1943-1945), enquanto transcorria a Segunda Guerra Mundial. O livro possui poemas longos que usam até recursos dramáticos, como 'O caso do vestido'. Em vários desses poemas recupera a narratividade, o contar uma história. Entre os poemas do livro, estão 'A flor e a náusea', 'Procura da poesia', 'Nova canção do exílio', 'Morte do leiteiro' e 'Mário de Andrade desce aos infernos'. A Rosa do Povo
Não grites, não suspires, não te mates: escreve.
Escreve romances, relatórios, cartas de suicídio, exposições de motivos,
mas escreve. Não te rendas ao inimigo. Escreve memórias, faturas.
E por que desprezas o homem, papel, se ele te fecunda com dedos sujos mas dolorosos?
Pensa na doçura das palavras. Pensa na dureza das palavras.
Pensa no mundo das palavras. Que febre te comunicam. Que riqueza.
Mancha de tinta ou gordura, em todo caso mancha de vida.
Passar os dedos no rosto branco... não, na superfície branca.
Certos papéis são sensíveis, certos livros nos possuem. 8501061360 Opinião completa em: http://www.historiasdeelphaba.com/201...
«Antes de qualquer comentário a este título permitam-me confessar-vos que nunca fui, creio que nunca serei, facilmente atraída pela poesia. Sempre que me era proposta a leitura ou análise deste género fazia-o de forma contrariada e o resultado nunca foi bonito… No entanto, não nego a mim mesma experiências e, por isso, quando a Companhia das Letras me brindou com esta publicação de Carlos Drummond de Andrade, A rosa do povo, eu soube que acabaria por lhe pegar. Assim fiz, numa tarde com cheiro de primavera, temperada de sol quente e com o peito desperto para emoções, afinal eu tinha a curiosidade do renome mesmo que me faltasse a vontade.
(...)» 8501061360 Canto ao homem do povo Charlie Chaplin
I
Era preciso que um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,
era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,
era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.
Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,
vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.
Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.
Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti
como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins.
Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.
Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.
E falam as flores que tanto amas quando pisadas,
falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.
II
A noite banha tua roupa.
Mal a disfarças no colete mosqueado,
no gelado peitilho de baile,
de um impossível baile sem orquídeas.
És condenado ao negro. Tuas calças
confundem-se com a treva. Teus sapatos
inchados, no escuro do beco,
são cogumelos noturnos. A quase cartola,
sol negro, cobre tudo isto, sem raios.
Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:
Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,
o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho.
E a lua pousa
em teu rosto. Branco, de morte caiado,
que sepulcros evoca mas que hastes
submarinas e álgidas e espelhos
e lírios que o tirano decepou, e faces
amortalhadas em farinha. O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo se interrompe. É negro, curto,
espesso. O rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, risco na parede,
caderno de infância, apenas imagem
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.
E já não sentimos a noite,
e a morte nos evita, e diminuímos
como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos
ao país secreto onde dormem os meninos.
Já não é o escritório e mil fichas,
nem a garagem, a universidade, o alarme,
é realmente a rua abolida, lojas repletas,
e vamos contigo arrebentar vidraças,
e vamos jogar o guarda no chão,
e na pessoa humana vamos redescobrir
aquele lugar - cuidado! - que atrai os pontapés: sentenças
de uma justiça não oficial.
III
Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome
dos que não foram chamados à ceia celeste
ou industrial. Há ossos, há pudins
de gelatina e cereja e chocolate e nuvens
nas dobras do teu casaco. Estão guardados
para uma criança ou um cão. Pois bem conheces
a importância da comida, o gosto da carne,
o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,
e sabes a arte sutil de transformar em macarrão
o humilde cordão de teus sapatos.
Mais uma vez jantaste: a vida é boa.
Cabe um cigarro: e o tiras
da lata de sardinhas.
Não há muitos jantares no mundo, já sabias,
e os mais belos frangos
são protegidos em pratos chineses por vidros espessos.
Há sempre o vidro, e não se quebra,
há o aço, o amianto, a lei,
há milícias inteiras protegendo o frango,
e há uma fome que vem do Canadá, um vento,
uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha
baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida
que mal decifras
o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,
os valos da lei, as léguas. Então te transformas
tu mesmo no grande frango assado que flutua
sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro
e chama, comida geral, que tarda.
IV
O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.
No festim solitário teus dons se aguçam.
És espiritual e dançarino e fluido,
mas ninguém virá aqui saber como amas
com fervor de diamante e delicadeza de alva,
como, por tua mão a cabana se faz lua.
Mundo de neve e sal, de gramofones roucos
urrando longe o gozo de que não participas.
Mundo fechado, que aprisiona as amadas
e todo o desejo, na noite, de comunicação.
Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,
ninguém te quis, todos possuem,
tudo buscaste dar, não te tomaram.
Então encaminhas no gelo e rondas o grito.
Mas não tens gula de festa, nem orgulho
nem ferida nem raiva nem malícia.
És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa
correndo, os copos voam,
os corpos saltam rápido, as amadas
te procuram na noite... e não te vêem,
tu pequeno, tu simples, tu qualquer.
Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,
andar aos mil num corpo só, franzino,
e ter braços enormes sobre as casas,
ter um pé em Guerrero e outro no Texas,
falar assim a chinês a maranhense,
a russo, a negro: ser um só, de todos,
sem palavra, sem filtro,
sem opala:
há uma cidade em ti, que não sabemos.
V
Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.
Não, não te ama. Um rico, em álcool,
é teu amigo e lúcido repele
tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos
o que há de água, de sopro e de inocência
no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos
que cultuamos, falsos: flores pardas,
anjos desleais, cofres redondos, arquejos
poéticos acadêmicos; convenções
do branco, azul e roxo; maquinismos,
telegramas em série, e fábricas e fábricas
e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.
Ficaste apenas um operário
comandado pela voz colérica do megafone.
És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.
Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,
aprendiz
bombeiro
caixeiro
doceiro
emigrante
forçado
maquinista
noivo
patinador
soldado
músico
peregrino
artista de circo
marquês
marinheiro
carregador de piano
apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos
VI
Já não penso em ti. Penso no ofício
a que te entregas. Estranho relojoeiro
cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,
o tempo anda. És vidraceiro.
Varres a rua. Não importa
que o desejo de partir te roa; e a esquina
faça de ti outro homem; e a lógica
te afaste de seus frios privilégios.
Há o trabalho em ti, mas caprichoso,
mas benigno,
e dele surgem artes não burguesas,
produtos de ar e lágrimas, indumentos
que nos dão asa ou pétalas, e trens
e navios sem aço, onde os amigos
fazendo roda viajam pelo tempo,
livros se animam, quadros se conversam,
e tudo libertado se resolve
numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.
O ofício é o ofício
que assim te põe no meio de nós todos,
vagabundo entre dois horários; mão sabida
no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,
o pé insiste em levar-te pelo mundo,
a mão pega a ferramenta: é uma navalha,
e ao compasso de Brahms fazes a barba
neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido
onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.
Foi bom que te calasses.
Meditavas na sombra das chaves,
das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,
juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,
anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta
de mil, os braços cruzados de mil.
E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada,
contra a miséria e a fúria dos ditadores,
ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança. 8501061360 É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fêz-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite na água, na pedra.
Que adianta uma lâmpada?
Que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espêsso e sem praia.
Não é dor, não é paz, é noite,
é perfeitamente noite.
Mas salve os olhos alegres!
E salve o dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gôzo na bicicleta!
Existir: seja como fôr.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as côres, a posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gôsto do dia!
Clara manhã, obrigado!
O essencial é viver!
Passagem da Noite
***
Este livro representa uma das surpresas mais bonitas que tive nos últimos tempos. Já andava de olho na poesia do Carlos Drummond de Andrade, e sabia que este livro estava editado pela Companhia das Letras, quando o encontrei num site chamado Booktique a 1 euro. Li esta versão fac-símile, imagino que as edições mais recentes tenham sofrido algumas modificações, mas não houve nada no português aqui escrito que resistisse ao entendimento. Por falar nisso, boa parte da beleza destes poemas passa, precisamente, pela acessibilidade linguística — seja para descrever a morte de um leiteiro, para falar sobre a chegada da noite ou sobre Charlie Chaplin (tão enternecedora que é a homenagem que Drummond faz a Chaplin), não corremos nunca o risco de encontrar discursos herméticos ou as ditas palavras caras.
Destaquei a Passagem da Noite porque foi durante a leitura deste poema que o tempo parou. Quanto terminei a leitura não mudei de página, fiquei retida nele: não estava preparada, simplesmente não estava preparada para esta transformação. Adoro a forma como fala da espessura da noite, da forma como a noite se inscreve nos corpos, como se infiltra, como passa a fazer parte de tudo o que é material e vive — e o poema poderia, para mim, valer só por isso, para mim já seria um belíssimo poema, mas passar desse tom menor para tom maior (sim, quase como se fosse uma melodia), agarrar as rédeas da noite, agitá-la entre os dedos e fazer erguer o dia... é maravilhoso, inesperado e maravilhoso. Sinto mesmo a alegria no Existir: seja como fôr: ser, estar, resistir a mais uma noite. Isso, simplesmente isso... 8501061360 A Rosa do Povo é, para mim, um dos livros mais difíceis do Drummond; não sei exatamente se gosto, se admiro ou se acho palavroso demais. De fato, alguns poemas são excessivamente discursivos para meu gosto mais sintético, e não poderiam deixar de ser: são exortações, conclamações, ora, discursos mesmo, pela revolução. É justo, mas ocasionalmente cansativo. Mesmo assim, Áporo, por exemplo, está nessas páginas, e é um exemplo de concisão admirável. Não ignoro que a preocupação social é apenas uma das faces do livro; ela é, no entanto, a que mais salta aos meus olhos, e a que produziu menos poemas que me dão prazer. 8501061360